terça-feira, 6 de abril de 2010

Édipo teve uma filha, e vive no Porto (Ipsilon)

Antígona, a filha de Édipo, é a grande figura da temporada do Teatro Nacional São João. Uma geração e 300 quilómetros depois, a história continua, mas por outros meios, a partir de 26 de Março. 

Quando Nuno Carinhas começou a juntar à mesa de uma sala do Teatro Dona Maria II, em Lisboa, os actores com quem vai à Grécia Antiga fazer sangue na primeira "Antígona" da vida do Teatro Nacional São João (TNSJ), o "Rei Édipo" de Jorge Silva Melo já tinha pernas para andar, e andava, cinco andares abaixo, mais perto do palco onde tem vida própria desde ontem. Durante semanas, o Édipo de Jorge Silva Melo e a Antígona de Nuno Carinhas moraram na mesma casa, como pai e filha (que é o que são na realidade, se quisermos levar a ficção a sério). Depois, cada um foi à sua vida.
O TNSJ estava em Lisboa por um mês, com o "Breve Sumário de História de Deus", e como Carinhas tinha por lá a maioria do elenco com que queria pegar na "Antígona" resolveu começar os ensaios a 300 quilómetros de casa. "Nós estávamos em cima, eles estavam em baixo. Mas não nos permeámos muito - embora um dos actores que estava connosco no 'Breve Sumário', o Daniel Pinto, já estivesse a trabalhar com o Silva Melo no coro do 'Rei Édipo'", diz o encenador ao Ípsilon já no Porto, no final de mais um ensaio de mesa no Mosteiro de São Bento da Vitória. É um mito urbano essa coisa de que o texto lá de baixo lhes chegava aos ouvidos no quinto andar - mas alguns, "muitos", actores desceram as escadas e foram lá abaixo ver Silva Melo a matar o pai, antes de matarem a filha com Nuno Carinhas. É tudo. Nuno Carinhas não tem a "curiosidade mórbida" das árvores genealógicas e não encorajou relações de sangue entre as duas montagens. "Ir por aí parece-me perigoso. É evidente que a Antígona é herdeira de um sangue amaldiçoado, isso percebe-se, e percebe-se também que já passou pela provação de dar sepultura aos pais. Mas isso para mim chega, não preciso de figurar tudo o que está para trás", explica. De resto, sublinha, cada uma das tragédias da trilogia de Tebas é "um capítulo fechado".
Montar a "Antígona", portanto, não faz parte de nenhuma política concertada dos teatros nacionais para fazer os clássicos. Diogo Infante lá terá as suas razões, no caso também pessoais, para se atirar ao "Rei Édipo", Nuno Carinhas tem as dele: "Foi uma questão de elenco, mas também uma questão de programa. Neste meu primeiro ano como director artístico do São João queria ir às origens - fomos às origens do teatro português com o 'Breve Sumário' do Gil Vicente e agora vamos às origens do teatro grego com a 'Antígona'. A única indecisão que poderei ter tido, já muito lá para trás, foi qual das Antígonas fazer, porque foi das tragédias mais reescritas e revisitadas ao longo dos séculos: apeteceu a muitos autores, de Brecht a Anouilh. Mas o TNSJ nunca tinha feito uma tragédia clássica, e era a altura de ir aprender a fazer". E depois havia uma actriz, Maria do Céu Ribeiro, das Boas Raparigas, que "tinha de ser" a Antígona.

Tensão à mesa

A mais de um mês da estreia, e com toda a gente ainda presa à mesa, com o texto à frente, Maria do Céu Ribeiro já sabe tudo de cor, e parece incrível que nunca ninguém se tivesse lembrado dela para isto: tem o olhar obstinado de quem vai até ao fim, e minutos depois de entrar na personagem torna-se evidente que ainda está para nascer o super-homem capaz de a parar. Nuno Carinhas põe Isménia (Alexandra Gabriel) e Creonte (António Durães) a barrar-lhe o caminho - estamos a assistir ao primeiro ensaio em que o encenador marca posições, e os antagonistas estão frente-a-frente, porque é importante que comece a haver tensão à mesa - e ela continua. Tem muito que andar até à estreia, mas já está na direcção certa.
Com o texto e parte da banda sonora já de pé - uma banda sonora da destruição, que começa em guerra e acaba com as sete portas de Tebas a fecharem com estrondo - e a cenografia toda na cabeça de Nuno Carinhas (Tebas vai acabar em cima da cratera de um vulcão), a história está prestes a continuar. É aqui que Édipo acaba, com toda a sua descendência, mas não para sempre. Milhares de anos depois ainda somos todos filhos dele, diz Nuno Carinhas: "O que se tira da 'Antígona' é que com certeza a Humanidade passou por grandes buracos negros de conhecimento e de civilização, porque já está tudo tão exposto aqui, e de forma tão contemporânea, que não se percebe o que andámos a fazer entretanto".

(Daqui)

Sem comentários:

Enviar um comentário