All the world's a stage
Shakespeare, As you like it
Para a Eunice Muñoz
Sobre umas tábuas o mundo no seu jogo:
movo-me, respiro, crio gestos,
saboreio o sal da fala, meus ouvidos
comunicam-me vida- a que entreteço
e a rajada que desponta de outros
em túmido rumor, pulso que aperto.
Sei que o exterior existe, espaço hostil,
sufocante de máscaras: olhos, mãos,
palavras de metal que cegamente
encenam uma ficção cruel:
uma baça repetição, o pérfido
quotidiano, num papel que se oficia
entre um acordar aceite e sem escolha
e a treva que fascina e apavora.
Nenhum cerco pode ser-me imposto aqui:
parto em busca de todos, mesmo desses
que não conheço: por eles afoito
meu intenso trânsito num corpo
alheio sempre, obscuro, a desvendar-nos
a profundeza comum que nos liberta.
Tantos seres fui, sou: em todos eles
me dispo de vacilante identidade
que em mim suspeito e aniquilo;
terei de reconhecer que a minha morte
inteira lhes pertence e sobre a fronte
só reflicto sua fragância de grinalda.
Na falésia deste palco, onde o mistério
nunca é mentira mas voz a desvendar,
pressagio o naufrágio
que sobre um espelho há-de trazer-me
o rosto único meu, que jamais vi.
Se eu nunca o descobrir, quem de entre vós
ousa moldá-lo no que de si lhe revelei
e entregar-mo, já sem nenhum nome?,
perfil de estrelas que oferenda em seu contorno
a música pela qual a terra ascende.
José Bento, in Silabário
"Nenhum cerco pode ser-me imposto aqui", poderia dizer o Vicente quando "atravess[ou] o primeiro muro de fogo com que Deus lhe quis impedir a fuga. [...] O seu gesto foi naquele momento o símbolo da universal libertação. A consciência em protesto activo contra o arbítrio que dividia os seres em eleitos e condenados."
ResponderEliminarSeja qual for o contexto, seja qual for a estratégia de fuga, a libertação deve ser sempre um dos maiores desígnios do ser humano.
Um abraço e ainda bem que tropeçaste neste poema.