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domingo, 2 de maio de 2010

O mundo, Um palco | José Bento

O mundo, Um palco | José Bento
 All the world's a stage
Shakespeare, As you like it

Para a Eunice Muñoz

Que aberto este recinto e magnífico!
Sobre umas tábuas o mundo no seu jogo:
movo-me, respiro, crio gestos,
saboreio o sal da fala, meus ouvidos
comunicam-me vida- a que entreteço
e a rajada que desponta de outros
em túmido rumor, pulso que aperto.



Sei que o exterior existe, espaço hostil,
sufocante de máscaras: olhos, mãos,
palavras de metal que cegamente
encenam uma ficção cruel:
uma baça repetição, o pérfido
quotidiano, num papel que se oficia
entre um acordar aceite e sem escolha
e a treva que fascina e apavora.


Nenhum cerco pode ser-me imposto aqui:
parto em busca de todos, mesmo desses
que não conheço: por eles afoito
meu intenso trânsito num corpo
alheio sempre, obscuro, a desvendar-nos
a profundeza comum que nos liberta.



Tantos seres fui, sou: em todos eles
me dispo de vacilante identidade
que em mim suspeito e aniquilo;
terei de reconhecer que a minha morte
inteira lhes pertence e sobre a fronte
só reflicto sua fragância de grinalda.


Na falésia deste palco, onde o mistério
nunca é mentira mas voz a desvendar,
pressagio o naufrágio
que sobre um espelho há-de trazer-me
o rosto único meu, que jamais vi.


Se eu nunca o descobrir, quem de entre vós
ousa moldá-lo no que de si lhe revelei
e entregar-mo, já sem nenhum nome?,


perfil de estrelas que oferenda em seu contorno
a música pela qual a terra ascende.


José Bento, in Silabário

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Fragmentos de um teatro às escuras, Pedro Tamen

A personagem veio de lá de trás
pelo meio da floresta de cadeiras
e foi sentar-se na primeira das filas
ao lado da outra personagem.

As luzes apagaram-se de repente
e de repente as personagens acederam à luz
e saltaram incandescentes para o palco.

Para um palco que ninguém viu então,
para um palco que nunca ninguém viu.

Pedro Tamen, in Relâmpago, n.º25

sábado, 20 de março de 2010

Salmo 139 mudado por Herberto Helder

Tu me sondas, Senhor, e me conheces.
Sabes quando me sento e me levanto,
de longe escrutas as menores intenções,
reconheces a minha marcha e vigias o meu sono.
Nada de mim te é estranho.
Adivinhas a palavra que se tece ainda em mim.
Estás em frente do meu rosto, estás atrás das minhas co
e pousaste a tua mão sobre a carne do meu ombro.
– Oh, tua ciência é a mais prodigiosa.
Como fugir à tua Face, como evitar teu Espírito?
Acho -te nos campos celestes e nas funduras da treva.
Se voo nas asas da luz para o outro lado das águas,
agarra -me a tua mão que jamais me deixará.
E se as trevas sem astros se derrubam sobre mim,
para teus olhos as noites nada mais são do que luz.
Foste tu, eu sei, quem ergueu a minha carne,
quem lentamente me urdiu no ventre de minha mãe.
Maravilho -me ao pensar no enigma criado.
De há muito já decifravas labirintos da minha alma,
e vias erguer -se a máquina dos meus ossos obscuros.
Minha vida estava inscrita no teu livro encoberto.
Ainda antes do tempo fxaras os meus dias.
Mas os teus, os teus enigmas, quem os pode decifrar?
Que se estendem pelo tempo como na terra as areias.
Odeio os teus inimigos com um ódio absoluto.
Tu me sondas, Senhor, e me conheces.
Adivinhas a palavra que se tece ainda em mim.
Tu que sabes do meu sono e da minha marcha incerta,
dá -me o caminho secreto para a tua eternidade.
mudado por  Herberto Helder

Salmo 139
In Poesia Toda. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 169 -170.

Um dos textos que Nuno Carinhas faz dialogar com Gil Vicente